Você deve ter ouvido falar da história da enfermeira Mariana de Oliveira Fonseca Machado, 30, Professora Doutora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, que morreu após dar à luz sua filha. A primeira notícia que saiu sobre o tema destacava: a professora teria morrido após "tentar parto em casa por 48 horas" com "ajuda de uma doula".
Quando li essa notícia, achei ela de cara muito mal contada. E lamentei: ela certamente cairia nas mãos dos críticos do movimento para embasar os supostos perigos do parto humanizado e do parto domiciliar.
Foi o que aconteceu.
A notícia começou a repercutir em outros veículos. É normal. Os jornalistas online se alimentam da internet e a alimentam: usam a fonte original para recontar a história para o próprio veículo. Mas, em geral, buscam-se outras fontes. Entrevistam-se pessoas. Se faz uma apuração própria e uma curadoria.
Não foi o que aconteceu.
A manchete sensacionalista que relaciona a morte ao "parto em casa" foi repercutida sem crítica e sem apuração. E espalhou uma mentira que me ofendeu em dobro: primeiro, como jornalista; depois, como mulher e mãe preocupada com a realidade do sistema obstétrico em nosso País.
A falsa notícia começou a ser desmontada pela nota oficial que a própria universidade soltou:
Assim, a Prof.a Mariana entrou em trabalho de parto no sábado, dia 11 de julho, estando acompanhada por profissional capacitado durante todo o processo. Para continuidade do trabalho de parto, encaminhou-se ao hospital no início da noite do mesmo dia, chegando ao local em perfeito estado de saúde. Algumas horas depois, Mariana foi submetida à cesariana, tendo a oportunidade de pegar sua filha no colo e amamentá-la. Posteriormente, foi encaminhada ao quarto junto com sua filha e, poucas horas depois, iniciou um quadro de complicações, que resultou no trágico desfecho. Infelizmente, preconceitos em relação ao parto natural e a "cultura de cesariana" brasileira, associados à falta de responsabilidade no compartilhamento de informações nas redes sociais e na mídia, levaram a divulgações equivocadas sobre o caso.
Felizmente, o próprio Estadão publicou a história verdadeira, no ótimo blog de Rita Lisauskas: Mariana morreu após uma cesárea.
Vivemos tempos de polarização. Em uma sociedade em que o Facebook é responsável por formar opiniões - e, ao mesmo tempo, nos fecha a opiniões contrárias às nossas -, perdemos a capacidade de dialogar e discutir. É assim com política, é assim também com a falsa dicotomia entre cesárea e parto humanizado. Infelizmente, na ânsia de emplacar uma história potencialmente viralizável, jornalistas que trabalham na internet acabam puxando pela polêmica e entrando no jogo da polarização. Foi exatamente o que aconteceu com a triste história da Mariana.
"Cada vez que uma mulher morre depois de tentar um parto em casa, o status quo comemora", Rita escreveu. E é verdade.
A enfermeira Mariana era ativista pelo movimento da humanização. Como a parteira Ana Cristina Duarte contou, ela sabia dos benefícios do trabalho de parto. Passou uma noite e um dia acompanhada da doula (profissional contratada para dar apoio físico e emocional à mulher) e de suas enfermeiras-obstetras (as que assistiriam o parto). Durante todo o tempo, ela passou bem e a bebê também. Depois de horas, ela foi ao hospital procurando por analgesia (esta é a maior causa de transferência de partos domiciliares: um desejo da mulher). O pedido foi negado pela equipe de plantão, como conta Ana Cris:
Chegou bem com seu companheiro, os batimentos cardíacos da bebê perfeitos, mas não conseguiu a ajuda que desejava. Não havia a possibilidade, como para a maioria das brasileiras, de alívio para a dor. Naquele momento da noite suas opções seriam continuar sem medicamentos ou aceitar uma cesariana. Ela optou pela cirurgia. Três horas após chegar ao hospital foi operada, sua filha nasceu bem, a cirurgia terminou bem, ela amamentou na sala de parto e com a filha no colo foi de maca para o quarto. Durante a madrugada algo aconteceu. Ela passou mal, entrou em choque e após algumas horas voltou a ser operada. Foi para a UTI, foi transferida para outro hospital e após 11 dias veio a falecer.
O hospital não divulgou a causa do choque que a levou à morte. Mas não, não foi o fato dela ter tentado o parto em casa, não foi fato dela ter tido parteiras ou doulas ou ela ser do movimento que levaram a esse trágico desfecho. Durante todo o trabalho de parto suas condições físicas - e as da bebê - estavam perfeitas. O quadro todo aconteceu após a cirurgia. E não após a "tentativa de parto humanizado".
Por que este caso não está sendo usado para discutirmos a assistência à gestante em trabalho de parto? A negativa do pedido de analgesia? Por que ela não recebeu alívio para a dor?
Por que este caso não está sendo usado para discutirmos os riscos da cesariana?
Por que alguns doutores compartilharam a trágica notícia para tentar justificar as suas taxas de 80% ou 100% de cesarianas, e também não contam que a mortalidade materna é de 0,9% nos partos vaginais e 2,7% nas cesarianas? Por que não mencionam que a cesariana é um fator de risco para a hemorragia pós-parto, que leva ao choque?
Reprodução/Facebook Melania Amorim
Em País em que, no setor privado, 88% das crianças nascem por cesárea (quando a recomendação da OMS é 15%), fazer manchetes sensacionalistas é, no mínimo, uma irresponsabilidade. E não se trata de um retrocesso, da negação dos avanços da medicina, mas de seguir as evidências científicas: a cesárea traz riscos para a mãe e para o bebê. Riscos que culminaram no trágico desfecho no caso da professora da UFSCar, e podem acontecer com outras mulheres.
Nós, jornalistas, precisamos ter responsabilidade. Sim, precisamos dar audiência e garantir cliques dos leitores. Mas isso não pode custar uma manchete sensacionalista, que tenta colocar em xeque um movimento que tem como único fim garantir às mulheres assistência adequada e cumprimento às normas da Organização Mundial da Saúde. Ao alimentar este Fla x Flu, quem perde é a saúde pública.