Ela não sabe explicar bem como é. Tem suas características e seu jeitinho, claro, mas defini-la é difícil, porque é tudo muito natural. Mas a conhece muito bem. Há quase 30 anos, Vera Abbud, 52 anos, é semanalmente a palhaça Emily. “Não sei quais as característica dela... mas uma coisa que ela tem é que ela é idiota. Basicamente. E tem que ser engraçada. O palhaço tem que fazer rir”. Com o vestido azul de bolas brancas, meia, sapato e o clássico nariz vermelho, ela revela de forma espontânea mais uma peculiaridade. “Adoro pular”, diz com um tom de voz específico enquanto é fotografada. É de Emily que estamos falando.
Hoje, Vera vai – como Emily – duas vezes por semana a hospitais públicos de São Paulo. Primeira palhaça do Doutores da Alegria, organização sem fins lucrativos fundada em 1991 por Wellington Nogueira, ela é uma das 39 artistas que atua em unidades de saúde na capital paulista – além disso, o grupo também realiza intervenções em outros estados e Vera integra também, há alguns anos, o grupo Sampalhaças, formado só por mulheres.
O foco é a criança, mas você pensa que as pessoas que trabalham com elas também precisam estar bem. Nós somos um apoio a todo o perrengue do hospital.
Mas quando começou, anos atrás, fez parte da primeira leva de profissionais do pioneiro grupo que começou a atuar em hospitais, até então prática desconhecida no Brasil. Vera havia se tornado palhaça há pouco tempo e se encantado com o ofício. Esse tipo de teatro mais físico e menos ligado às palavras e a um texto a cativou. Encarou o desafio do novo trabalho. O foco era atuar em alas de crianças. “O Doutores quebrou mesmo uma fronteira na época. A gente era pioneiro e tinha um desconhecimento, a gente não tinha feito isso nunca, era muito tateante, até a reação das crianças...o que assusta? Do que elas gostam? E você vai pegando o que funciona. E os médicos também não tinham muita noção dos efeitos. E aos poucos foi sendo aceito porque funciona”.
Não são médicos, está bem claro. E não estão ali para realizar algum procedimento técnico específico. Mas não deixam de fazer parte da equipe de alguma forma. E com uma função bem determinada. “Acho que é alterar a realidade e criar pontes, dar um suporte para quem quer se seja. Uma alternativa para respirar um pouco uma outra coisa fora daquela rotina que tem muitos protocolos, horários. É bom ter ali um cara fora da ordem, algo que te tira um pouco de lá. Serve como um relaxamento, uma cor que passa. O principal objetivo é a pessoa se divertir um pouco”. Assim eles chegam – sempre em duplas. Coloridos. Atentos. E prontos para fazer uma graça – com eles mesmos. “O palhaço vai muito em cima de quem você é. É um treino de espontaneidade, mas sempre na auto-ridicularização e nunca no outro e essa é a diferença do palhaço para o comediante”.
Ela é idiota. Basicamente. E tem que ser engraçada. O palhaço tem que fazer rir.
Assim trazem um pouco de leveza ao ambiente. Uma distração. Em algumas situações, viram conhecidos dos pacientes e das famílias que estão no hospital. Vera conta que acaba sendo inevitável criar vínculo com aquelas pessoas. Muitas passam realmente a ficar mais tempo no hospital do que em suas casas e o que acontece ali importa bastante. “A família passa a ser o hospital. No começo tem um monte de gente, visita, e com o tempo vão sumindo. Tem uma menina que eu vi por três anos. Ela veio a óbito, esperava transplante, e você fica muito tempo no hospital e os pacientes e as mães, em geral, acabam tendo nas enfermeiras, nos palhaço, nos médicos pessoas da família”.
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E não são somente os pacientes e seus parentes que encontram esse conforto. Por mais que o objetivo seja atuar com as crianças que estão ali internadas, a presença deles acaba mexendo com todos que estão por lá. “O foco é a criança, mas você pensa que as pessoas que trabalham com elas também precisam estar bem. Nós somos um apoio a todo o perrengue do hospital, um sistema super difícil, estamos só em hospital público hoje e é bem estressante, os funcionários tem que dar conta de muita coisa. Acho os médicos uns heróis, eles estão sempre lá, a bucha pega neles, decisões difíceis. O hospital e o lugar que você nasce e o lugar que você morre, é um lugar muito intenso”.
É bom ter ali um cara fora da ordem, algo que te tira um pouco de lá. Serve como um relaxamento, uma cor que passa. O principal objetivo é a pessoa se divertir um pouco.
E toda essa intensidade ela começou a viver com o seu trabalho com o Doutores da Alegria. Antes disso, Vera não tinha nenhuma outra relação com hospitais e a área de saúde. Seu gosto era, na verdade, por natureza e bichos, como define. Tanto que estudou biologia. Ainda fala com paixão dessa área e diz que se for convidada para observar borboletas ela topa ir de graça mesmo. Tem muito interesse por outras formas de vida, digamos. Outras culturas, línguas.
E esse conhecimento já ajudou inclusive no seu trabalho nos hospitais. Vera fala um pouco de tupi-guarani – o pai de seu filho é indígena – e isso proporcionou conforto e alguns sorrisos para uma garota indígena que estava internada em um dos hospitais que o grupo atua. Defensora e admiradora dos Guaranis – “Acho um dos projetos de resistência mais absurdos que têm” – Vera levou apenas algumas palavras familiares para a paciente. “Falo um pouco e tenho alguns livros, sei algumas músicas, tenho umas fotos de aldeia”. Conseguiu levar um pouco daquela leveza. Missão cumprida.
O palhaço vai muito em cima de quem você é. É um treino de espontaneidade, mas sempre na auto-ridicularização e nunca no outro e essa é a diferença do palhaço para o comediante.
Mas nem sempre as coisas dão super certo. O dia a dia é desafiante, mas os momentos em que o retorno é bacana, a troca é rica e o trabalho flui bem compensam todos os outros. E Vera vive um grande exercício de entrega e foco no agora. No hospital, é só o que importa. “É uma coisa muito viva, você trabalha com tudo que está acontecendo lá na hora. Mesmo quando você sabe que a criança tem uma doença terminal. Você não vai pensar que ela tem só mais dois dias. É lá”. Emily - e os demais palhaços - sempre focam na vida de agora. Mesmo que meio desajeitados. Bobos. Inocentes. Ou saltitante, nesse caso. “O palhaço é o mínimo social ainda incluído na sociedade. E ele acredita no mundo”.
O que não é muito diferente do que Vera pensa. Não tinha como ser.
Ficha Técnica #TodoDiaDelas
Texto: Ana Ignacio
Imagem: Caroline Lima
Edição: Andréa Martinelli
Figurino: C&A
Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC
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