Quando o ambicioso projeto de O Irlandês - primeiro do peso-pesado do cinema americano Martin Scorsese com a Netflix - foi anunciado, muita gente pensou: “Por que precisamos de outro filme de máfia de Scorsese?”
O questionamento é mais do que justo, já que a produção marca o retorno da parceria do cineasta com seu primeiro ator fetiche, Robert De Niro. Aliás, o último filme da dupla foi Cassino (1995), uma trama sobre a máfia que sofreu muitas críticas na época de seu lançamento por ser considerado (erroneamente) um subproduto de Os Bons Companheiros (1990) a grande obra prima do diretor nesse gênero.
Isso sem falar que O Irlandês ainda conta com outra participação emblemática na filmografia de Scorsese, a de Joe Pesci, que tanto em Bons Companheiros quanto em Cassino interpreta papéis semelhantes que acabaram estigmatizando a carreira do ator como o mafioso explosivo e inconsequente.
Pois então... Será que realmente precisamos de outro filme de máfia de Scorsese? A resposta é: Sim, precisamos. E o motivo mais óbvio para embasar essa resposta é que O Irlandês, que estreia nos cinemas em sessões especiais nesta quinta (14), é um anti Os Bons Companheiros.
Tanto no filme de 1990 quanto em O Irlandês, Scorsese mostra toda sua habilidade em contar histórias envolvendo a máfia da forma mais cinematográfica possível, mas ele o faz de maneiras completamente diferentes.
Pode parecer estranho, mas O Irlandês tem uma relação bem mais íntima com faroestes revisionistas, aqueles que mostram a morte do velho oeste, que captam a melancolia do fim de uma era, como Pistoleiros do Entardecer (1962), de Sam Peckinpah; O Homem que Matou o Facínora (1962), de John Ford; ou Quando os Homens São Homens (1971), de Robert Altman.
Enquanto tudo é glamourizado (de um jeito torto, verdade) em Os Bons Companheiros, em seu novo filme Scorsese opta por uma forma bem mais “realista”, seca, despojada de retratar o universo mafioso. Henry Hill (Ray Liotta) era um narrador que se gabava em ser um gângster em Os Bons Companheiros, já Frank Sheeran (De Niro) é um matador que conta sua história sem qualquer nostalgia.
A trama é focada em Sheeran (De Niro), um ex-soldado da Segunda Guerra Mundial que passa a trabalhar como caminhoneiro. Buscando uma grana extra, ele começa a roubar as cargas que transporta a mando de um gângster local. Mas sua vida muda quando ele conhece Russell Bufalino (Joe Pesci), um dos chefões da máfia da Filadélfia. Eles se dão muito bem, e logo Sheeran passa a ser seu braço direito.
Até o dia em que Bufalino indica Sheeran para ser um tipo de guarda-costas para Jimmy Hoffa (Al Pacino), um importante líder sindical com grandes aspirações políticas.
Por mais que conte uma história que atravessa décadas e acontecimentos cruciais para a história dos Estados Unidos, O Irlandês nunca passa a impressão de ser um épico. Mesmo com suas impressionantes três horas e meia. Sua duração, aliás, é um dos pouquíssimos pontos negativos da produção. Com um pouco de esforço, dava para cortar alguns bons minutos.
E já que entramos na seara dos “defeitos”, outra questão que ainda será muito debatida em O Irlandês é a utilização do CGI, imagens geradas por computador para rejuvenescer os atores. Principalmente em relação a De Niro.
Na primeira cena em que Frank Sheeran aparece mais novo, a imagem é extremamente artificial. O personagem parece saído de um videogame. Mas com o decorrer do filme esse “bug” vai se suavizando e você passa a se acostumar. Mesmo com a estranha escolha de colocar olhos azuis em De Niro.
Outro problema da narrativa é dar tão pouco tempo de tela para Anna Paquin, que interpreta uma das filhas de Sheeran, Peggy. Ela é uma personagem bem interessante que serve de contraponto à vida paralela de seu pai, mas que nas três horas e meia de filme tem apenas uma mísera fala.
Mesmo assim, são problemas pequenos que são superados (e muito!) pelas qualidades da produção. Seu trio de protagonistas, por exemplo, está simplesmente excelente. De Niro e Pacino brilham intensamente na tela.
Mas é Pesci quem surpreende. Russell Bufalino foge totalmente dos papéis que marcaram sua carreira. Um dos chefões da máfia da Filadélfia, Bufalino é do tipo de cara que conversa com você com toda a calma do mundo e com um sorriso no rosto, mas que manda te matar sem o menor remorso.
O Irlandês é uma saga que mostra o sonho americano se transformando em pesadelo. Uma ode ao vazio de um mundo que o próprio Scorsese já retratou de forma “nostálgica”. Um filme que retrata um período extremamente importante da história dos Estados Unidos pelos olhos do americano médio, o homem comum que pode, por alguma circunstância, se transformar em um “pintor de paredes” (você vai sacar a brincadeira ao ver o filme).