A artista mexicana Frida Kahlo, mais conhecida por suas cores berrantes e autorretratos expressivos, tem uma história daquelas. No quesito físico, teve poliomielite quando criança – deixando uma lesão vitalícia em seu pé direito, que lhe rendeu apelidos nada carinhosos na infância. Anos depois, teve uma fratura pélvica após um grave acidente de bonde, fazendo com que ela permanece muito tempo da adolescência imóvel numa cama de hospital.
Além de toda a carga psicológica que os incidentes acima descritos poderiam tê-la proporcionado, viveu um relacionamento ioiô e abusivo com o marido Diego Rivera – que aceitava os relacionamentos extraconjugais que ela somava com mulheres, mas não com homens –, e que, tempo depois, descobriu que escondia um relacionamento com sua irmã mais nova, Cristina.
Mesmo com as adversidades que foram surgindo em sua jornada, a pintora mexicana continuou se expressando por meio da arte que nascia de sua própria dor. É por causa dessa força absurda que um grupo de baianas escolheu o nome dela para estampar o projeto de suas vidas: La Frida Bike.
Criamos um espaço de interação, socialização... de afeto mesmo. E a galera foi se identificando, principalmente com a questão da bicicleta.
Pelo menos é o que garante a líder delas, Lívia Suárez: "Queríamos dizer que todas as mulheres podem ser Frida e superar as suas dores e limitações", afirma em entrevista ao HuffPost Brasil. "E com cor e alegria", completa Luise Reis, integrante do coletivo. "Nossa, que brega, Luise", e responde Lívia, aos risos.
Foi nesse clima de uma-completa-o-que-a-outra-diz, que Lívia, Alana Santana, Luise Reis e Jamile Santana receberam a reportagem na sede da iniciativa, em Salvador. As respectivas idades, elas preferem não informar. "No dia em que o jornalismo souber a idade de Glória Maria, ele venceu na vida", brinca Luise, quando questionada.
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Coincidência ou não com a história controversa de Frida Kahlo, a casinha azul cheia de afeto fica no bairro da Saúde, no beco da Agonia. Antes de virar um espaço físico, quando foi idealizado, em 2015, por Lívia e a amiga Maylu – que não integra mais o grupo –, o projeto, ainda em seu embrião, era identificado como um "empreendimento sustentável".
"Nós criamos o Bike-Café-Poético, uma cafeteria itinerante. A gente vendia café e levava poesia através da bicicleta, dentro da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Criamos um espaço de interação, socialização... de afeto mesmo. E a galera foi se identificando, principalmente com a questão da bicicleta", conta Lívia. Em cima da magrelinha, a dupla se propunha a espalhar uma ideia social, enchendo o campus de poesia e incentivando um estilo de vida saudável, simples e sustentável.
Em uma mesa de discussão sobre periferia e negritude, não haviam negros. Saímos de lá com isso borbulhando na cabeça.
Ao sentirem a cidade em cima da bicicleta, elas perceberam que, ao mesmo tempo que algumas mulheres amam o meio de transporte de paixão, algumas não sabiam pedalar ou tinham certo receio que percorrer a cidade sob suas rodas – seja pela falta de respeito dos motoristas, pelo assédio dos homens ou pela falta de estrutura que a capital baiana esbanja no quesito ciclovias.
"Fomos a um evento chamado Bicicultura, em 2016, que se propunha a discutir o uso da bicicleta em Salvador e a gente percebeu que só tinha a gente de mulher negra no local. Em uma mesa de discussão sobre periferia e negritude, não haviam negros. Saímos de lá com isso borbulhando na cabeça", conta Lívia.
A gente vendia café e levava poesia através da bicicleta.
Junto a constatação de não-protagonismo na discussão política acerca das bikes e a relatos de mulheres negras – próximas ou não – de que nunca tinham aprendido a pedalar, por falta de incentivo ou de autoestima, decidiram tomar uma providência.
Criaram o "Preta, Vem de Bike", projeto que ensina mulheres negras periféricas a pedalar, promovendo inclusão social, igualdade étnica e igualdade de gênero às periferias e quilombolas, numa topografia onde as ciclo faixas são estampadas apenas no contorno da orla e em bairros mais abastados
Dentro do 'Preta, Vem de Bike' a gente foi aprendendo algumas coisas: Que a gente não só estava mexendo com mobilidade, mas processos de cura e, principalmente, de sonhos.
"A nossa primeira aluna foi dona Elza, que é uma mulher de 60 anos, que hoje utiliza a bicicleta como meio de transporte. Dentro do 'Preta' a gente foi aprendendo algumas coisas", lembra Lívia. "A gente não só estava mexendo com mobilidade, mas com saúde, autoestima, processos de cura e, principalmente, de sonhos", completa.
Sonho mesmo. Em pesquisa realizada com as alunas, descobriram o interesse por pedalar nasceu porque era um desejo de infância não-realizado, um luxo ao qual elas não tinham acesso. Por isso, após as aulas, fazem acompanhamento e ajudam na coleta de bikes para restauração ou doação, já que 90% das meninas contempladas pelas aulas são de baixa renda.
Lívia ainda conta que as lições são dadas sempre aos domingos, na praça do Campo Grande – por uma questão de acessibilidade. "A gente ia perguntando para as meninas: Vocês querem aprender aonde? E elas respondiam que não queriam na periferia porque era muito cheio, iriam sentir vergonha. E lá é bem grande, amplo, quem está aprendendo se sente superconfortável"
Geralmente são mais discutidas as questões do ciclismo e não da ciclo-mobilidade. A gente queria a bicicleta como forma de ir e vir. Um meio autônomo, sustentável e anarquista.
Começaram em três, e hoje são 23 em todo o Brasil – o Preta já está em São Paulo e Rio de Janeiro, e já foi para Recife, Brasília, Fortaleza, Belo Horizonte, Aracaju, Florianópolis e Porto Alegre. "A ideia é ocupar todas as cidades possíveis, mas agora a gente tá com foco no Nordeste", diz Lívia. Durante esse percurso, ganharam o Prêmio Mobilidade 2017 e o Frida Fund, como coletivo de maior impacto mundial.
Esse último edital – cujo nome já entrega que renderia bons frutos –, proporcionou a instalação da casa e a consequente consolidação absoluta do projeto como pioneiro e protagonista nas discussões de raça e mobilidade no Brasil. "Geralmente são mais discutidas as questões do ciclismo e não da ciclo-mobilidade. A gente queria a bicicleta como forma de ir e vir. Um meio autônomo, sustentável e anarquista", explica Alana.
Quem bate na casa número 55, "a representação física da união de todos esses projetos e ações" do grupo, encontra uma cafeteria, claro, mas também um espaço de co-working, biblioteca, oficina de reparos, oficinas de mecânica e até aula de defesa pessoal. "E também encontra essas beldades aqui (risos)", brinca Lívia.
Nas pedaladas, o povo acha que a gente tá fazendo protesto. Afinal, o quê que que esse bando de preta tá fazendo junto?
A casa possibilitou a maturidade. Entre outras coisas, o coletivo construiu o PlanMob, projeto de mobilidade voltado para a bicicleta, apresentado à Prefeitura de Salvador, e se prepara agora para proporcionar a profissionalização e rentabilidade. Lívia conta que a ideia é "ter mulheres negras trabalhando e preparando bicicletas, pensando em novas possibilidades. Tudo é pensado para o homem branco, para a estrutura do homem. Esse é o objetivo do La Frida hoje: empregabilizar e capacitar"
É tanta coisa junta e misturada que Lívia tenta resumir: "O La Frida são esses trezentos projetos e esse povo doido que busca incluir e debater a todo o momento a mulher negra e a mobilidade. Vendo as lacunas, percebendo e entendendo que a mulher negra no plano de mobilidade envolve outras questões, envolve afetividade, envolve movimento, envolve vários outros quesitos que não são abarcados normalmente. Por isso os temas se transversalizam".
E a gente quer que mulheres negras a façam essa bicicleta, já que é pensada para elas.
Dentro das mil e uma novidades que preparam, uma delas salta aos olhos: a própria bicicleta. O grupo foi um dos 10 contemplados pela Vale do Dendê, uma espécie de incubadora aceleradora de projetos de Salvador. "Estamos na fase de capacitação, estamos desenhando essa bicicleta. E a gente quer que mulheres negras a façam essa bicicleta, já que é pensada para elas", conclui Lívia.
Juntas há dois anos e sintonizadas como nunca, pretendem crescer mais e mais. "Nas pedaladas, o povo acha que a gente tá fazendo protesto. Afinal, o quê que que esse bando de preta tá fazendo junto?", conta Luise. Ah, se eles soubessem...
Ficha Técnica #TodoDiaDelas
Texto: Clara Rellstab
Imagem: Juh Almeida
Edição: Andréa Martinelli
Figurino: C&A
Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC
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