Vida de cientista tem um quê de abnegação. Uma vontade grande de descobrir coisas que extrapola horários de expediente, invade os finais de semana, as noites, a vida em família.
Sempre foi assim para a astrofísica gaúcha Thaisa Storchi Bergmann, uma das cientistas brasileiras mais reconhecidas internacionalmente. Sua pesquisa contribuiu para comprovar que há buracos negros no centro de todas as galáxias — uma constatação que ajuda a explicar a formação delas e também, portanto, a História do universo.
Em seu estudo mais famoso, publicado em 1993, a astrofísica gaúcha demonstrou que havia um buraco negro do tipo supermassivo (e não estelar) no centro de NGC 1097, uma galáxia a 50 milhões de anos-luz da Terra ("relativamente próxima"!). A descoberta colaborou para comprovar que essa conformação é comum a todas as galáxias.
"O buraco negro captura a matéria, a matéria brilha, e a gente vê essa 'assinatura', a evidência de que há gás girando em altíssima velocidade, na forma de um disco achatado. Não fui a primeira a observar isso, mas fui a primeira a mostrar que naquela galáxia este fenômeno estava acontecendo."
Quando mostrei os dados para o meu supervisor, ele achou esquisito. 'Tu fez algo de errado, faz de novo.' Eu sabia que estava certa.
Os gases observados por Thaisa viajavam a 10 mil quilômetros por segundo, o que é uma velocidade altíssima até para os parâmetros superlativos dos astrofísicos. "Quando mostrei os dados para o meu supervisor, ele achou esquisito. 'Tu fez algo de errado, faz de novo'. O que eu tinha enxergado se achava normalmente em buracos negros estelares, mas com velocidade 10 vezes menor. Eu sabia que estava certa, eu conferi." A observação, afinal, apontou que havia um objeto de massa "enorme" no centro: um buraco negro.
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A descoberta foi feita durante o pós-doutorado na universidade de Maryland, nos Estados Unidos. Os dados para chegar lá foram coletados no Observatório Interamericano de Cerro Tololo, no Chile.
Mas não pense que a lente de quatro metros de diâmetro de um telescópio permite enxergar um objeto àquela distância. Os cientistas usam um aparelho chamado espectrógrafo para medir os comprimentos de onda da luz e inferir assim as distâncias e tamanhos dos corpos celestes. "A astronomia é o estudo da luz que vem dos objetos. Até hoje, nunca se viu a sombra de um buraco negro. Enxergamos o que está acontecendo através da luz dos gases."
Liguei para o diretor do observatório e falei que tinha direito a ir, que sou mulher, tenho um filho, mas também tenho a minha ciência!
O espaço para usar um observatório era (e ainda é) disputadíssimo. Uma observação astronômica, nos anos 90, durava cerca de uma semana, na qual o pesquisador trocava o dia pela noite (hoje, o volume de dados que se obtinha em 6 dias é obtido em 6 horas, e o cientista nem precisa se deslocar: envia todos os números, calibragens e parâmetros, e uma equipe local retorna os dados). Aquela década foi o auge das observações na carreira da cientista. E foi também quando nasceram os filhos.
Em janeiro de 1997, chegou o caçula. Em abril, Thaisa teria direito a usar o observatório de Cerro Tololo. Ela estava amamentando, mas não queria abrir mão do espaço que havia obtido na agenda do centro de pesquisas. Porém, o ambiente, com dormitórios pequenos, contíguos, e necessidade de silêncio absoluto, não é adequado à presença de crianças.
"Foi um dilema. Eu queria muito ir. Liguei para o diretor do observatório e falei que tinha direito, que sou mulher, tenho um filho, mas também tenho a minha ciência." Após uma semana de negociação, o diretor providenciou um alojamento separado para a pesquisadora, onde o bebê poderia chorar à vontade. Thaisa contratou uma babá e partiu para as montanhas chilenas.
Pesquisar é uma escolha, diz Thaisa. Há, na Academia, quem prefira se concentrar apenas nas aulas. "Para fazer pesquisa, tem de trabalhar em fim de semana, de noite. É uma carga que fica a teu critério, o quanto vais te dedicar. E as bolsas de pesquisa existem para premiar isso", observa ela, lamentando a falta de investimentos federais nesta área.
O currículo da pesquisadora rendeu a ela em 2015 o prêmio da Unesco e da Fundação L'Oréal Women in Science, que homenageia a cada ano 5 mulheres cientistas (uma de cada continente), por suas realizações. Mas ela pondera que o reconhecimento não teve impacto nas suas pesquisas; a repercussão maior foi fora da Academia, porque ficou mais conhecida.
Thaisa não se considera uma feminista, mas diz que a ciência ainda é muito masculina. E que a sociedade como um todo está condicionada por um "viés inconsciente" que penaliza as mulheres. "Recentemente, fui convidada pela Unesco a dar uma palestra em Paris, e meu marido, por conta dele, me acompanhou. Na recepção do hotel, o balconista disse: as suas despesas, senhor Bergmann, estão cobertas, mas as da sua esposa, não. As pessoas sempre consideram primeiro o homem."
Somos penalizadas por um viés inconsciente, que está ali sempre. As pessoas sempre consideram primeiro o homem.
Aos 62 anos, Thaisa já deixou a rotina das salas de aula, mas ainda dá expediente na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), onde segue capitaneando pesquisas e orientando alunos de doutorado, mestrado e iniciação científica.
Mantém pesquisas em parceria com cientistas de outros países, dando sequência àquela descoberta do começo dos anos 90. "Não me imagino parada, ainda tenho muita vontade e muitos resultados para ver."
Ficha Técnica #TodoDiaDelas
Texto: Isabel Marchezan
Imagem:Caroline Bicocchi
Edição: Diego Iraheta
Figurino: C&A
Realização:RYOT Studio Brasil
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